Abeloirar



- ‘Ó Lico, o que é aquilo que abeloira?’
– diz a crónica familiar que perguntou a Tia Sara ao sobrinho que a esperava, na estação, à chegada do comboio ao Porto, após uma viagem de duas horas, lá desde as faldas da serra. Perguntou, intrigada, ao ouvir um qualquer som estridente de buzina ou sirene de fábrica, a assinalar o turno da hora de almoço. E por aqui se enriquece o léxico do falante, mas não só. Em outros contextos, pessoas, pessoas idosas, arrisquemos, velhos, também ‘abeloiravam’, ou ‘punham-se a abeloirar’, aos filhos, sobretudo aos netos.

Imagem de Nuno Santos (Pixabay)
Traduzindo: gritar, berrar muito alto, vozear para longe, levando implícita a noção de que interessa no caso mais o barulho, o volume do som emitido, menos a mensagem ou o conteúdo da mensagem levada pela voz. Sinónimos? Por hipótese, ‘barregar’, ‘berregar’, ‘esbarregar’, ou então ‘esporteirar’.

De onde virá tal palavra, que nunca o falante viu escrita e que, seja pelo betacismo, seja pela alternância do ditongo, pode apresentar outras formas, além da proposta: ‘abelourar’, ‘avelourar’, ‘aveloirar’ – para não falar de outra, de que já falaremos: ‘abloirar’.

Abeloirar ou ‘abelourar’ está registado no léxico galego, mas com um sentido diverso, significando rodar, ou rolar, um objecto por um plano inclinado, ‘aos boleirós’, ou ‘às boleiradas’, que eu julgo poder traduzir por ‘aos rebolões’, ou ‘aos trambolhões’. Aliás, podemos suspeitar aqui talvez uma metátese, derivando ‘abeloirar’ de um primitivo ‘aboleirar’, conectado com os já falados ‘boleirós’ ou ‘boleiradas’. Sem nada a ver, portanto, dir-se-ia, com o nosso vocábulo.

Mas ‘abelourar’ é conhecido igualmente entre nós, na pátria transmontana, aliás como verbo reflexo, significando pespegar-se, permanecer ou ficar, aborrecendo, incomodando (Língua Charra, Cabral, 2013), serrazinando, porventura. Quer dizer, nada a ver com a denotação do termo que aqui tratamos, além de não parecer inteiramente segura a fonte invocada para o recenseamento do vocábulo.

Imagem de Christian Supik + Manuela Pleier (Pixabay) 
Vejamos, em ‘abeloirar’ não é difícil de reconhecer a forma ‘beloiro’ (ou ‘belouro’, em princípio derivada de ‘pelouro’, sign. principal de objecto esférico, bola), conhecendo-se mesmo uma palavra ‘embeloirar’ (formar beloiros, ganhar beloiros, ou grumos, uma massa, por exemplo). O problema é que nada disto joga com o significado inequívoco do termo em causa, tratando-se por isso de continentes distintos do universo semântico, com algum mar de permeio.

Ora bem, e se a palavra estiver mal escrita, se não for ‘abeloirar’, mas antes ‘abloirar’, por exemplo, forma na prática homófona, subtraindo-se assim o termo ao domínio morfológico, não só semântico, do radical ‘belouro’? Na verdade, se não encontramos ‘abloirar’, encontramos todavia, por curiosíssima coincidência, algo de muito parecido: ‘abroirar’, que também no plano semântico se aproxima do nosso termo.

Esse vocábulo está catalogado como regionalismo transmontano (Língua Charra, cit.), com o significado de chamar alguém, de dar sinal a quem ande perdido. Estarão os dois termos ligados pelo fio da evolução (abroirar>abloirar, mudança do ‘r’ em ‘l’, segundo o padrão evolutivo), acompanhando-se a transformação de uma deslocação do significado, por sinal bem ligeira? Fica a pergunta, apenas, na falta de dados suficientes para uma resposta segura, convicta.

 Texto de Albino Matos


abeloirar             (v.intr./tr

1. Gritar, berrar muito alto (interessa o volume, não a mensagem)
2. =Barregar=berregar=esbarregar
3. Poderia consentir outras grafias: ‘avelourar’, ‘abelourar’, ‘aveloirar
4. (- Eu só o ouvia a abeloirar, como um tolo
http://lusografiacarlosdurao.blogspot.pt/2010/08/blog-post_26.htm
(registo da palavra no léxico galego: ‘abelourar’, mas com outro significado).                          http://sli.uvigo.es/ddd/ddd_pescuda.php?pescuda=abelourar&tipo_busca=lem
Haverá erro de ouvido (‘abloirar’, v.g.)? Comp. ‘abroirar’ (Cabral – chamar, dar sinal a quem anda perdido). Cabral, também ‘abelourar’ (diferente).


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